(Um blog do Agrupamento Vertical de Escolas de Aljezur)

13 de novembro de 2007

SOPHIA, 1919-2004

A propósito da 4ª Edição do Concurso Literário Sophia de Mello Breyner Andresen, concurso dirigido aos alunos do 3º Ciclo e do Ensino Secundário, aqui ficam dois textos acerca da sua vida e obra.




Sophia de Mello Breyner Andresen, poeta, autora de contos para crianças, deputada à Assembleia Constituinte, morreu aos 84 anos, em Lisboa. Embora já não a possamos ouvir na dicção cristalina da autora, a sua obra, em prosa e em verso, está entre as mais importantes da literatura portuguesa.

Nasceu no Porto no dia 6 de Novembro de 1919. Sophia de Mello Breyner Andresen descendia de um negociante dinamarquês, Jan Hendrik, que fez fortuna no Porto e aí passou a residir. Do lado materno, herdou a linhagem aristocrática dos Mello Breyner que construíram muita da sua reputação na defesa da causa liberal contra os absolutistas.

A infância e adolescência passou-as Sophia entre a Quinta do Campo Alegre – que é hoje, em parte, ocupada pelo Jardim Botânico do Porto – e a casa de férias, junto ao mar, na Granja.

Começou a escrever cedo, publicando o seu primeiro livro, intitulado "Poesia", em 1944. Mas os primeiros versos são bastante anteriores. Ainda adolescente, descreveu assim esse impulso que a conduzia para a poesia: "É-me necessário fazer versos, é-me vedado saber porquê." Mais tarde, ensaiou algumas respostas, mas, sobre o acto poético, sempre deixou transparecer a impressão de algo que não é redutível a uma explicação.

Se a poesia constitui a parte mais significativa da sua obra, é talvez como escritora de contos para crianças que se torna mais reconhecida. Gerações de crianças partilharam, na escola, o imaginário fabuloso desses contos. Datam de 1958 os primeiros: "A Menina do Mar" e "A Fada Oriana". São livros que surgem de uma insatisfação em relação à literatura que então se produzia para as crianças. A Sophia, já mãe, parecia-lhe que eram livros escritos para patetas e não para crianças. Detestava o lado condescendente, a escrita pejada de diminutivos, "a sentimentalidade da mensagem", a ausência do maravilhoso. "Uma criança não é um pateta. Atirei os livros fora e comecei a inventar", disse.

Do casamento celebrado, em 1946, com o advogado e jornalista Francisco Sousa Tavares, teve cinco filhos, entre os quais se conta o jornalista e escritor Miguel de Sousa Tavares. O activismo político do marido começou, entretanto, a puxá-la para os terrenos da intervenção pública, dando uma forma mais consistente ao sentido de justiça e de ética presente na sua formação. Em 1958, a irrupção do furacão Humberto Delgado na vida política portuguesa conduz Sophia a um empenhamento cívico cada vez mais forte. Viria a integrar a Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos. A sua própria poesia reflecte esse empenhamento, como neste retrato do Portugal salazarista, incluído no "Livro Sexto": “Quando a pátria que temos não a temos / Perdida por silêncio e por renúncia / Até a voz do mar se torna exílio / E a luz que nos rodeia é como grades".

O 25 de Abril de 74, viveu-o com a euforia de quem sentiu coincidirem por um breve momento na história um projecto político e um projecto poético. É sua a frase – recuperada das palavras de ordem do Maio de 68 – lançada nas vésperas do 1º de Maio, "A poesia está na rua". Como é seu o mais belo dos poemas inspirados na revolução de Abril: "Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo".

Sobre o ano de 74, Sophia guardava essa impressão de um tempo pleno, vivido com o coração na boca. Em entrevista ao Jornal de Letras, recordava: "Lembro-me de uma cidade de Lisboa onde todas as pessoas que encontrávamos sorriam, lembro-me de ver passar pequenos grupos de gente nova no Rossio que pareciam bandos de bailarinos ou de gaivotas (...) E tudo isso era um tão bonito e extraordinário momento poético e como uma ilha noutro planeta."

Em 1975, Sophia foi eleita deputada à Assembleia Constituinte, nas listas do PS, intervindo, sobretudo, em matérias que diziam respeito à cultura.

Em 1999, recebeu o Prémio Camões, o mais importante atribuído à literatura lusófona. A sua obra está editada pela Caminho que, entretanto, tem vindo a preparar, sob a orientação de Luís Miguel Gaspar e de Maria Andresen, filha de Sophia, uma edição crítica de toda a sua poesia.


BAILANDO JUNTO AO MAR


"Odiei o que era fácil / Procurei-me na luz, no mar, no vento." Assim se (d)escrevia Sophia, em 1958, no livro Mar Novo. Pelo menos, tanto quanto alguém se descreve num poema. E ela própria o duvidava: "a poesia é anticonfessional", disse em entrevista ao Jornal de Letras, quando lhe perguntavam sobre a espécie de predestinação inscrita no seu nome – Sophia, como saber ou sageza, alguém que incorpora em si, misteriosamente, um "conhecimento íntimo do essencial", como escreveu o ensaísta Eduardo Lourenço.

Mas, de alguma forma, toda a poesia de Sophia testemunha aquela busca de si nos elementos, busca que permitisse superar aquilo que a poeta diagnosticava como uma perda de identidade do homem moderno: a cisão com a natureza. "Toda a minha poesia oscila entre a confiança nessa unidade e uma espécie de pânico do seu fracasso", afirmou noutro passo da entrevista ao Jornal de Letras.

Esta ligação à natureza vinha-lhe da infância, que Sophia considerava uma "reserva de criação inesgotável". Uma infância vivida a meias entre a Quinta do Campo Alegre, no Porto, e a casa de férias na praia da Granja. Sempre com o mar por perto: fosse na imaginação despertada pelos temporais que faziam bater as portadas da quinta – e aí teve Sophia o primeiro encontro com a poesia, quando, aos três anos, lhe ensinaram a Nau Catrineta – fosse no areal que se estendia desde a porta aberta da "Casa Branca", assim evocada num poema do seu livro de estreia. "Lugares sagrados", como lhes chamava Sophia, que habitam a sua obra em comunhão com outros que a vida foi acrescentando: a Grécia, por exemplo, que a poeta via como o berço de uma humanidade que, aceitando a sua imanência, se constrói na procura da verdade e do rigor.

O seu primeiro livro, "Poesia", mostra já as marcas da sua obra, que o tempo foi depurando: o ritmo e a limpeza melódica do verso, a transparência das palavras. Para ela, a escrita constituía-se como um poder de enunciação e de ordenação do mundo, uma vitória sobre o caos que antecede toda a criação. Dizer é arrancar o lume à massa informe, esculpir o tempo. "Digo o nome da cidade – Digo para ver", escreveu num poema do livro "Navegações". E daí, esse lado solar, cristalino, da sua poesia: o poema é uma emanação dessa luta interior pelo equilíbrio e a clarividência, o testemunho de quem emerge da sua própria desordem para espreitar a luz, consciente de que caminha sempre "rente à deriva".

Para quem sonhava com a inteireza do ser, não custa imaginá-la a procurar junto ao mar essa unidade inteira, a promessa de além-vida que fixou num poema do "Livro Sexto": "Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto do mar."


Paulo Esteves

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